SE AS FOLHAS AINDA FOSSEM VERDES...
O violão
estava pendurado nas costas, talvez fosse sua única companhia, sua única
amizade, seu alento nas horas que queria ficar só, às vezes olhando a chuva do
celeiro, às vezes sentido a noite emaranhar-se com seus tormentos. Entrou na
sala onde havia um homem sentado no sofá fumando um cigarro e observando a
fumaça perder-se no tempo com sua gaita sobre o braço do sofá.
- Está na
hora meu pai.
- Hora de
que filho?
- Minha
hora de partir, de buscar meu próprio rumo.
- Você é
muito jovem ainda.
- Eu sei
me cuidar pai.
- Não
duvido disso, mas aqui é seu lugar.
- Meu
lugar é lá fora pai.
- Seu
irmão é mais velho que você e não deixou nossa casa.
- Sou
diferente pai, preciso ganhar o mundo.
- Ganhar
o mundo com seu violão?
- Com
minha música e meus sonhos.
- Não vou
te prender filho, não iria adiantar, você seria infeliz.
- Sou um
andarilho pai, o mundo é minha casa, minha música minha vida.
- Não vai
se despedir do seu irmão?
- Melhor
não, ele não me entende.
- Vai
voltar um dia?
- Não
sei, adeus pai.
- Quer levar a gaita?
- Não, ela é sua,
- Você é muito bom, ela lhe fará bem.
- Melhor não meu pai, melhor eu ir logo.
- Adeus
filho.
Ele virou
as costas, caminhou até a sala, abriu a porta e partiu. O pai ficou sozinho,
acendeu outro cigarro, deu um trago, colocou sobre o cinzeiro, pegou a gaita e
desistiu de tocar, ficou lembrando sua esposa que já era falecida há algum
tempo, talvez desde então seu filho mais novo tenha começado a sentir vontade
de partir, de seguir seu rumo, ouviu o portão de madeira fechando e preferiu
não olhar e vê-lo ir embora, no fundo queria muito que ele fosse feliz.
O ônibus
encostou na parada, um posto de estrada, o homem desceu degrau por degrau pela
única porta do veículo, tinha barba de uns cinco dias, vestia calça jeans,
jaqueta jeans por cima da camisa branca, chapéu e botas, tudo um tanto surrado
pelo uso, nas mãos um violão e uma pequena mala, entrou no bar e foi até o
balcão, colocou a maleta e o violão num banco e sentou no outro.
- Uma
cerveja e algo para comer, por favor.
O barman
abriu a cerveja, trouxe algo para comer.
- É novo
na cidade?
- Pode-se
dizer que sim.
- Se está
procurando trabalho como músico, por aqui é difícil.
- Eu sei.
- O
senhor não fala muito.
- Não,
quase não falo.
Ele terminou a refeição, pagou,
pegou seus pertences, saiu do bar e seguiu pela estrada, caminhando devagar e
assoviando uma música, a mesma que tocava com a gaita de seu velho pai.Caminhou
uns trinta minutos até que parou em frente a um portão, o portão que ficou para
trás havia muito tempo. Murmurou para si um poema que veio imaginando no
caminho.
Aqui eu não me sentia bem
Tudo era tão difícil
A estrada era de poeira
Às vezes ventava tanto que eu tinha que me esconder
Dentro da geladeira
E nesses momentos eu só queria ir embora
Agora fico olhando aqui do lado de fora
E não sei se devo abrir o portão
Só em ver a varanda tão cheia de flores
De amor e de vida
E paz a reinar
Tenho medo que não me abracem
Que não me recebam bem
Por causa da saudade
Ficou ali parado alguns minutos e por fim abriu o portão e entrou, foi
vencendo a distância entre o portão, (o mesmo portão que ficou para trás havia
muito tempo, o mesmo portão que viu seu vulto e seu violão desaparecerem na
estrada) e a porta da casa que estava fechada, bateu e ouviu uma voz vida de
dentro
- Já vai
A porta se abriu e um homem um pouco mais velho que
ele apareceu
- O que faz aqui depois de tantos anos? Perguntou o
homem
- Voltei para rever meu passado e tentar encontrar
meu futuro – Respondeu
- Quem é? Disse uma mulher lá de dentro
- É meu irmão – Respondeu o homem da porta
A mulher apareceu junto a porta, também era um
tanto mais velha que ele
- Eu sou esposa do seu irmão, ele fala muito pouco
de você – Disse a mulher
- Eu compreendo – Respondeu
A mulher virou-se para o homem que estava na porta
e disse:
- Não vai convidar seu irmão para entrar, para
conhecer a família, conhecer nossos filhos?
O homem virou para ele e disse:
- Entre, já faz tanto tempo que nem o conheço mais
– Disse o homem
- Sim, faz muito tempo – Respondeu e entrou na sala
- Sente-se – Disse o homem agora dentro da casa
Ele sentou e colocou o violão e a pequena mala no
chão, ao lado do sofá.
- Eu vou chamar as crianças e terminar o jantar –
Disse a mulher
Ela subiu a escada para os quartos e chamou os
filhos que desceram correndo e abraçaram o tio distante, tio que nunca tinham
visto, além de antigos retratos.
- Tio você veio de longe? - Perguntou o menino de uns oito anos
- Sim, vim de longe, do outro lado da montanha.
- Nós te amamos, papai só fala de você as vezes,só quando perguntamos, mas nós
te amamos - Disse a menina de uns seis anos.
Ficaram na sala se conhecendo até que o menino disse:
- Toque o violão.
Ele pegou o violão e ficou ali tocando, cantando algumas músicas, a voz já não
era a mesma, mas ficou ali tocando e cantando seu passado.
- Pegue sua gaita e toca pro tio - Disse a menina
O menino subiu e desceu a escada correndo e trouxe a gaita, o homem pegou e
reconheceu a gaita de seu pai.
- Toca pra mim - Disse ao sobrinho
O menino tocou, e riu e tio chorou.
- Está triste? - Perguntou a menina
- Não, estou lembrando do meu pai, avô de vocês, que também tocava gaita.
- Essa era dele, papai me deu quando vovô morreu - Disse o menino
E ficaram os três ali a conversar, enquanto seu irmão e a esposa preparavam o
jantar.
Chegou a hora do jantar e foram todos para a mesa, quando terminaram a mamãe
falou para as crianças se despedirem do tio e irem pra cama.
-Mãe eu posso fazer um desenho e pintar no quarto antes de dormir, para mostrar
o tio amanhã?
- Pode sim, agora se despeçam do tio, subam e orem antes de dormirem. - Disse a
mãe.
- Até amanhã tio - Disse a menina
- Você vai morar com a gente? - Perguntou o menino.
- Ainda não sei, mas amanhã a gente vai passear, agora vão se deitar.
As crianças subiram correndo e felizes.
Os três adultos ficaram na sala e a mulher falou.
- Seria bom você ficar conosco, sempre tem lugar.
- Eu pretendo ficar, se puder
- Hoje você dorme na garagem, vamos lá arrumar, amanhã a gente resolve - Disse
o irmão
- Até amanhã - Disse para a cunhada.
- Até amanhã.
Os dois irmãos saíram da casa e foram para a
garagem, entraram e ele disse ao irmão mais velho:
- Eu tentei a vida na música
= E então?
- Minha experiência não foi das melhores
= Mas, e sua música?
- Isso é só um detalhe
= Não quer falar?
- Melhor não
= Drogas? Foi isso?
- Eu só quero recomeçar
= Depois de tanto tempo fora?
- Eu preciso
= Tantos anos, acha pouco? Há sete anos que não
liga
- Era melhor não ligar
= O pai se foi a dois anos, esperando você entrar
pela porta
- Eu não tinha como voltar
= E agora volta esperando sorrisos
- Não
espero sorrisos, apenas uma chance
= Você não é um bom exemplo de vida para meus filhos.
- Eu sei, mas preciso ter uma família, preciso acreditar na vida.
= Desde que seja longe daqui, o ônibus parte as cinco e trinta da manhã, lá do
posto.
- Não tenho chance?
= Estou pensando no bem dos meus filhos, você é um andarilho, seu lugar não é
aqui, você não faz parte da minha família, desde que saiu pelo portão para
seguir seus sonhos e nos deixou, eu e o pai sozinhos.
- É um adeus?
= Adeus
Antes do galo cantar sentiu que teria mesmo que partir, saiu da garagem,
chegou ao meio do quintal, olhou para trás e viu a casa que deixaria mais uma
vez, dessa vez para sempre, não fazia parte dali, talvez nunca tenha feito
mesmo, enquanto caminhava até o portão foi criando um poema.
Ainda não
ouvi o galo cantar
Mas
confesso que tenho medo
Do que
poderá vir, fico confuso
Só em
pensar como a lua irá dormir hoje
As
estradas irão aparecer do nada
Mas só
poderei seguir uma
A estrada
do meu destino
E não sei
se estarei pronto
Para
levar aos ventos
O Amor
que conheço
Para
falar desse Amor
Que não
mereço
Minha
fragilidade está à flor da pele
Acho que
ficarei à beira mar
Ficarei
por horas
Para
tentar descobrir
Se
poderei mesmo ser um pescador
Saiu pelo portão e seguiu a estrada que o levaria até o posto, onde chegou na
tarde passada, parou na pequena ponte sobre o córrego, olhou as águas claras
que seguiam o caminho, resolveu descer para sentir o córrego de perto, desceu,
abaixou e tocou a água limpa, nesse momento pensou umas palavras que mostravam
um pouco do que estava sentido, do que viu além das águas do córrego.
VÁCUO
DENTRO DO CÓRREGO
Olhando
de longe parece
Não
existir fronteiras
Toda a
paisagem é maquiada com flores
É de
perto que se vê
O vácuo
dentro do córrego
Os
versículos do mesmo capítulo
Que não
se juntam
O amargo
dos sorrisos
As rugas
que se multiplicam
Os fuzis
que atiram em silêncio
Os muros
que se levantam
Os vivos
que se tornam mortos
Entrou no
ônibus levando a mala e o violão, sentou num lugar junto a janela,
esperando a hora do ônibus partir, enquanto isso ficou imaginando, olhando,
tentando descobrir onde está escondido o horizonte ausente, tentando
descobrir quando os melhores anos de sua vida iriam lhe reencontrar. O ônibus
partiu pontualmente as 5:30, ainda de madrugada, ele olhou a paisagem em
movimento e falou para si mesmo:
- “Eu sei
que meu olhar percorre apenas estradas vazias”
Eram sete
da manhã quando a mãe, um pouco entristecida foi atender os filhos que chamavam
na sala.
- Mãe –
Disse a menina, que estava ao lado do irmão que tinha a gaita na mão.
- Sim,
mamãe está ouvindo.
- Olha o
girassol que desenhei e pintamos juntos pro tio, será que ele vai gostar?
- Mãe
- Oi
filho
- Diz
onde o tio está?
Arnoldo
Pimentel